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Guerreiro com nome de anjo

29 de junho, 8h50 da manhã, Mesquita, Rio de Janeiro. Uma pequena caixa de papelão perto de uma vala. Pulgas, formigas, sujeira, restos de comida. Um gatinho quase sem vida. Foi assim que a designer e ilustradora Charllote Meyer, de 26 anos, encontrou o personagem desta história. Para o filhote de cerca de 20 dias e olhos profundamente azuis, uma vida ainda tão curta, mas já cheia de sofrimento.

Sem pensar duas vezes, Charllote o levou para casa, mergulhou de cabeça no papel de protetora. “Senti desespero, não imaginava o que me esperava ao cutucar aquele corpinho imóvel, encolhido, magro, gelado, de pelo acinzentado pela sujeira”, relembra. Era hora de batizar o pequeno, não havia escolha mais apropriada que o nome de um anjo: Miguel, ou só Miguelzinho. Um anjo escolhendo um nome para outro.

Começava aí uma jornada que mudaria a vida não só deste gatinho, mas também de Charllote. Logo de cara, Charllote notou que aquele filhote era especial. Não apenas pela força que tirou sabe-se-lá-de-onde para continuar vivo. Miguelzinho não movimentava as patas traseiras. “Ao reanimá-lo, notamos a falta de movimentos nos membros inferiores e as fortes dores que sentia”, explica Charllote. O motivo da paralisia? Provavelmente, lesão por agressão.

Em meio a inúmeros exames, o mantra de Charllote era um só: “não importa o resultado, serei muito amado”, repetia incansavelmente. Tanto é verdade que não se deixou abater pela opinião de um veterinário que recomendou a eutanásia de Miguelzinho, acreditando em um dano permanente na coluna. “Chorei muito, mas virei para o médico e disse que estávamos lá para fazer um raio-X da coluna. Totalmente contrariado, ele fez o exame, que não acusou nenhuma fratura óssea. Sua coluna estava intacta!”, conta Charllote.

Na clínica veterinária da Dra. Rosely Jardim Rocha, a atual médica de Miguelzinho e uma das grandes responsáveis por todos os cuidados com a saúde dele, as notícias não foram muito animadoras: o gato apresentava sinais de infecção urinária. Os olhinhos não andavam bem, uma inflamação tinha de ser tratada com urgência. Por fim, o inchaço abdominal indicava que o pequenino não conseguia fazer suas necessidades sozinho. Ele precisaria passar por lavagens frequentes.

Mesmo sabendo o que teria de enfrentar, nunca passou pela cabeça de Charllote não seguir adiante com Miguelzinho. Ela é o tipo de pessoa que cuida de animais por amor”, comenta a Dra. Rosely. A designer teria pela frente muitas idas ao veterinário, despesas médicas, noites em claro, mas não estava disposta a desistir. Para isso, contou com a ajuda do marido Felipe Romano, que é técnico em informática e fez o papel de “pai” em sua ausência. No trabalho, teve também a compreensão e o apoio do chefe e dos colegas.

Foi então que sua aventura inundou a internet, com a criação da página “Ajudem o Miguelzinho” no Facebook. “Acho muito interessante as pessoas terem acesso à história dele, nosso guerreiro que luta todos os dias para melhorar”, conta.

Na rede social, Miguelzinho tem mais de dois mil fãs. São pessoas que apoiam, compartilham as conquistas diárias deste pequeno lutador e ajudam Charllote a custear o tratamento, a alimentação, as consultas, os medicamentos e, agora, as sessões de fisioterapia e acupuntura para alívio das dores e estimulação das funções nervosas de Miguelzinho.


Charllote e Miguelzinho

As contribuições vêm por diversos meios: rifas, venda de camisetas, vaquinhas e doações em conta. Por R$ 10,00, é possível participar da rifa com sorteio de camisetas ilustradas com Miguelzinho. Por R$ 50,00, encomenda-se uma das 10 estampas diferentes das peças desenvolvidas com exclusividade por Charllote. Na vaquinha ou com depósitos em conta corrente, cada um ajuda como puder. A disposição é tanta que até um piquenique foi organizado para que os fãs pudessem conhecer Miguelzinho pessoalmente.

Hoje, com dois meses de tratamento com a Dra. Rosely e todo o carinho que se pode imaginar, Miguelzinho mostra evoluções na movimentação das perninhas. Vídeos no Youtube dão a chance de acompanhar os progressos. “Apesar da paralisia, ele sempre foi um gato muito esperto, afetuoso e comilão. Quem está ao seu lado percebe que ele melhora a cada dia”, diz a Dra. Rosely.

O felino já mexe as patas, se arrasta mostrando que sabe o que quer, mas – acima de tudo – deixa claro, para quem quiser ver, que não guarda rancores do passado tão recente de dor. O chamego com Charllote, que conversa e veste o filhote como bebê, não deixa dúvidas da relação de amor entre eles.

No currículo de Charllote, uma trajetória longa de proteção aos animais. Entre resgatados e adotados, tem em casa outros cinco gatos – Mellorine, Sanji, Libby, Franz e Moanna – e um cachorro – Gregory. A dor da perda recente de sua cadelinha Kate, de 16 anos, ainda é um sentimento muito presente. Para a legião de fãs de Miguelzinho, o apelo de Charllote vai além da captação de recursos para o tratamento. “O que quero mesmo é que as pessoas se conscientizem sobre a castração e posse responsável, para que casos como o do Miguelzinho e de outros animais parem de se repetir todos os dias. Abandonar, negligenciar e maltratar um animal é crime e deve ser denunciado, não vamos nos calar!”, desabafa.

Fica claro que, independente de crenças ou religiões, Charllote e Miguelzinho são o mais puro exemplo de que anjos existem, circulam entre nós e, principalmente, cruzam o caminho uns dos outros. E quando isso acontece, o resultado não pode ser outro: as dificuldades deixam de ser pedras no sapato e viram oportunidades para o aprendizado de verdadeiras lições de vida. “Aprendi a nunca desistir da vida. Por menor ou mais complicada que seja, sempre vale a pena lutar”, encerra Charllote.

O Brasil do abandono

A história de abandono de Miguelzinho coincide com a de outros 20 milhões de cães e 10 milhões de gatos neste país, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Um número que cresce a cada ano e dispara mais de 30% nas épocas de férias, segundo o Centro de Controle de Zoonoses, período em que os donos “se lembram” de que não têm com quem deixar seus cães e gatos durante as festas de Natal e Ano Novo.

A solução é a castração dos animais e a conscientização da população. Cada casal não esterilizado é capaz de gerar até 40 filhotes por ano, e ninguém sabe ao certo quantos desses animais são abandonados todos os dias nas ruas brasileiras.

O abandono e os maus tratos de animais configuram crime ambiental, conforme a Lei Federal 9605/98, com pena de até quatro anos. Cabe a cada um de nós a tarefa de denunciar à polícia. As denúncias podem ser anônimas e são válidas no caso de maus-tratos e outras práticas, como abandonar, espancar, envenenar, não dar comida diariamente, manter preso em corrente, local sujo ou pequeno demais os animais domésticos.

Miguelzinho na internet

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Nota da editora

A página de Facebook de Miguelzinho foi retirada do ar após seu falecimento. Leia mais.

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